Eu imaginava uma luz branca acima da minha
cabeça. Uma luz muito forte, uma luz de paz, de calma, de purificação, de
renovação. Essa luz entrou em mim. Pela minha cabeça, meu pescoço... Ela
percorria cada cantinho do meu corpo, enquanto tudo que havia de ruim se
acumulava como uma nuvem negra no meio do meu estômago. E eu sentia enjoo. Mas
a luz se espalhava cada vez mais, ela tomou conta do meu peito e fez meu
coração se iluminar, fez meus pulmões se abrirem em uma inspiração profunda e
cheia de luz. Eu sentia a luz penetrar em todas as minhas incontáveis células.
E eu enxergava claramente a luz penetrando nas membranas plasmáticas das
células, mas mantendo-as inteiras, íntegras, brilhantes. Cada organela se
iluminava como pequenas estrelas e minhas células viravam o céu. Diferentes
céus de diferentes pequenos mundos, que unidos formavam o universo gigante que
há dentro de mim.
Aquela luz ia empurrando a nuvem negra de
negatividade e tristezas cada vez mais para baixo... Ela passava por minhas
pernas, joelho, calcanhar, até sair por meus pés por completa e adentrar nas
profundezas da Terra. E então, eu inteirinha era a luz. Eu brilhava, sorria,
levitava, me sentia energia, e não humana. Me sentia nadando na luz da Lua,
cada reflexo batendo em mim nos mais perfeitos ângulos, minha mente girando
feito um Fibonacci. Acho que eu não estava sob total controle da minha mente,
mas eu estava calma, leve, talvez hipnotizada e só me deixei levar, porque talvez
eu também precisasse de respostas...
Talvez aquela música foi o que, de fato, me
hipnotizou. Mesmo eu sendo luz, a luz tinha um som, o som sempre esteve
presente e parecia vim de dentro de mim também, numa frequência gostosa e
profunda, que me carregou para outro plano. O som dos tambores parecia sincronizado
com os batimentos do meu coração. A flauta amolecia meus músculos e me
desligava. O chocalho me trazia memórias que, na verdade, eu nunca vivi. O som
dos pássaros, das árvores, do vento, de um lugar desconhecido, mas
estranhamente tão conhecido. Eu sentia o som de cada instrumento se conectando,
cada detalhe, cada acorde em perfeita harmonia, cada voz que às vezes surgia e
eu não compreendia o que diziam, mas diziam tanto... Eu sentia que me chamavam,
que me conheciam. E eu sentia tanta nostalgia, tanta saudade, tanto sentimento
guardado em um peito que nem era meu...
E em um certo momento eu esqueci daquela luz,
porque eu havia me transportado para um corpo leve e dançante, que só se
importava com aquela música, aquele mantra tão lindo... Meu corpo não era meu
corpo atual, mas eu sentia com naturalidade cada movimento de cada músculo que
se balançava naquele ritmo tão contagiante. Eu levantava os braços em direção à
Lua, balançava meu quadril em círculos como se eu estivesse com um bambolê
imaginário, sentia meus pés descalços e calejados pisando em pequenos galhos e
folhas, e produzindo um som a mais naquela orquestra espiritual. Me balançava
talvez da forma que o vento me balançava, porque eu também o sentia em minha
pele, em harmonia, em um abraço.
Eu sentia o calor da fogueira que queimava no
meio daquela celebração e, então, tudo tomou forma melhor. Eu era índia? Éramos
uma tribo? O que estávamos celebrando? Por que eu dançava? Por que tocavam
aquela música tão hipnotizante? Cenas começaram a surgir na minha frente como
flashes de memórias, mas não eram memórias minhas, eu não era eu. Eu corria
pela floresta como se estivesse fugindo de algo ou alguém, eu estava em pânico.
Mas eu também corria alegre,sorrindo, observando aquela natureza tão linda,
agradecendo por viver naquele lugar. Eu tomava banho de rio, brincando com as crianças,
fazendo guerra de água. E eu me via presa, as mãos amarradas, pés, jogada em um
canto gritando sem saber para quem. Eu cantava e dançava em noites iluminadas
pela fogueira e pela Lua, porque aquilo me fazia bem, e talvez eu precisasse
dar valor à momentos em que eu podia me sentir bem...
Eu tinha um arco e flecha, mas eu não caçava
animais. Eu queria ser caçadora de sonhos e esperanças. Eu sentia o cheiro de
sândalo se misturando com o cheirinho de terra molhada, meus cheiros
preferidos. Mas eles foram trocados pelo cheiro de queimado, que vinha do fogo que
queimava tão perto de mim. Enquanto isso, um homem me enforcava, ele estava em
cima de mim e eu não conseguia me mover, nem gritar, eu não podia fazer nada...
Sentia as lágrimas escorrendo por meu rosto como um escape, como explodir, como
pedir socorro tão inutilmente. E então, eu me via abraçando uma árvore enorme.
E as lágrimas se tornavam mais leves, porque eu tinha fé na força da natureza e,
em particular, naquela árvore. Eu conversava com ela, rezando, com lágrimas de
emoção que molhavam seu tronco e proporcionavam uma troca de energia tão
intensa...
E aquelas cenas se tornavam reais demais pra
minha capacidade de entendimento. Mas tudo também se tornava mais claro, porque
parecia ter um um “porquê” e porque tudo era familiar demais. E de repente,
aquela árvore se tornou outra árvore... O pé de amora que havia atrás da minha
casa quando eu era criança. E então, eu não era mais índia. Eu era eu mesma,
anos atrás, eu havia voltado à minha infância. Minha mente de Fibonacci girou e
percorreu cada detalhe de cada canto daquele lugar tão especial pra mim, porque
eu queria me lembrar mais dele. E as cenas voltaram a surgir na minha frente,
mas dessa vez eram cenas que de fato vivi...
Eu estava no início das escadas daquela igreja,
subindo devagar, vendo as ondas quebrarem nas pedras. As escadas se
transformaram em grama e, de repente, eu estava naquele jardim lindo no qual
sonhei uma vez, no dia em que minha bisavó faleceu. E o Sol brilhava tão perto
de mim, que ofuscava minha visão e eu tinha que apertar os olhos. E então, o
Sol estava em Minas, eu estava na cidade dos meus avós, e eu estava presa entre
um arbusto e meu primo, que me segurava à força e tirava minha roupa...
O medo que eu sentia e a incapacidade de agir
eram proporcionais aos daquela outra cena em que me seguravam no banco da
capela do colégio mandando um “demônio” sair de mim. Ou como quando riam de
mim, zombavam de mim e aquelas vozes ecoavam na minha cabeça sem parar. E as
vozes se transformavam na minha própria voz dizendo que não posso perder as
esperanças e que sempre há uma luz no fim do túnel. Esse foi o tema de um dos
meus textos, que me fez ganhar o primeiro concurso de redação da minha vida, e que
me motivou a escrever como fuga.
E de
repente, eu estava nadando, mergulhando naquelas ondas maravilhosas e cheias de
energia. Eu sentia a liberdade no mar. E então, a liberdade se transformava em
prisão. Uma prisão dentro de casa, fisicamente entre paredes tão fechadas e
verbalmente, porque não havia liberdade de comunicação. Uma prisão no colégio,
naquele banheiro que me trancaram, em cada momento que fui assediada e não
soube agir... Isso levou à prisão do meu psicológico, da minha capacidade de
raciocinar, de me entregar à vida e viver sem lembrar do passado. Eu era
prisioneira dos meus traumas. Eu era prisioneira dos meus próprios pensamentos
embaralhados em realidades distintas.
E tudo estranhamente parecia se encaixar.
Realidades distintas... Talvez tudo realmente era real. Talvez já fui índia com
traumas muito parecidos com meus traumas da vida atual. Talvez isso explique
essa situação louca que vivenciei conectada a um mantra xamânico. Talvez minha
busca por respostas num espaço xamânico tenha tido uma razão que até então, eu
nem sabia. Talvez tudo seja carma e eu precise superar traumas e corrigir erros.
Talvez tudo seja muito mais óbvio do que imaginamos e muito mais profundo do
que acreditamos.
Talvez todas as nossas vidas estejam
interligadas com cenas e emoções similares, que se conectam através do
pensamento, da alma,da espiritualidade. E então somos redes de corpos diferentes,
mas de um mesmo espírito. De vidas diferentes, mas de certa forma, uma mesma
vida, que se renova e deve continuar com um outro objetivo, em outro lugar. E o
conjunto dessas redes, ou o conjunto dessas vidas, é a minha vida. Sou eu,
apenas. É o meu universo que brilha, e meu brilho é a minha luz no fim do
túnel.
E essas redes são proporcionais às conexões de minhas
células. Aquelas células iluminadas como o céu e que, unidas, formam o meu
universo. E tudo começa a voltar... As estrelas, minhas organelas, minhas
células, meus órgãos, membros, eu cheia de luz, a luz acima da minha cabeça, eu
elevo minha cabeça como que em busca da luz, porque não quero que ela se afaste
de mim. E então, eu voltei ao meu corpo e ao meu estado natural após uma longa
e profunda meditação.
Eu chorava e nem havia sentido que estava
chorando, mas eu chorava muito. Eu nem sabia que era possível chorar meditando
e só perceber isso após a meditação. Eu não sabia o que sentir. Não sabia se
sentia medo ou alívio, não sabia se me emocionava com o que presenciei ou se
sentia o nervosismo. Mas talvez isso tenha me ajudado a colocar certos
pensamentos em ordem. Talvez isso tenha me ajudado a tirar pesos de mim, a me
dar uma força superando traumas, lidando de forma mais natural com problemas...
Eu não sabia se eu deveria considerar isso real ou um sonho. Não sabia se havia
dormido meditando ou se minha mente realmente viajou para tão longe daqui e tão
perto de respostas quase que indecifráveis. Talvez eu até já saiba demais, mas
na verdade, isso me leva a não saber de absolutamente nada.